Tragédias como a enchente histórica da primeira semana de setembro de 2023 deixam marcas permanentes nas vidas das pessoas atingidas. Entre quem perdeu tudo e quem estendeu a mão em solidariedade, mesmo em um momento tão difícil, muitas histórias ficam em evidência. Em comum, a necessidade de recomeçar e recuperar o que o maior desastre natural da história do RS levou.
Esta edição do Jornal Nova Geração conta como parte da população viveu alguns dos piores dias do Vale do Taquari e como se preparam para uma retomada – alguns no local onde estavam, outros longe do rio.
Na microrregião de Estrela, onde três municípios estão às margens do Taquari, vários grupos tiveram resgates dramáticos, com o avanço na correnteza do rio. Foram utilizados caminhões, embarcações e aeronaves de todos os tipos e tamanhos. A maioria dos relatos vai no mesmo sentido: nunca houve uma enchente tão grande e tão violenta.
Por outro lado, alguns municípios ainda não finalizaram a contabilidade dos prejuízos econômicos, ainda que ações em nível governamental tenham sido anunciadas. Todas as cidades atingidas decretaram situação de calamidade pública, o que deve facilitar o acesso à recursos estaduais e federais.
Mais da metade da população atingida
Os moradores que precisaram sair de casa ficaram concentrados em dois locais em Estrela: no Ginásio Ito João Snel e no ginásio do bairro Boa União. Cerca de 600 pessoas foram distribuídas entre as bases de apoio, fora quem foi para residências de parentes ou amigos. De acordo com as autoridades, cerca de 65% da população foi atingida pela enchente. O Centro Comunitário Cristo Rei foi o ponto de referência para entrega e retirada de doações.
Grande parte dos bairros ficaram ilhados devido aos bloqueios das principais vias. O centro de Estrela teve acesso impossibilitado durante toda terça-feira. Pela primeira vez, o fluxo na rua Coronel Mussnich foi totalmente interditado, o que impediu a população de atravessar de um ponto a outro da cidade. Além disso, a vazão do Arroio Estrela causou correnteza na via. A situação também dificultou o trabalho das equipes da Defesa Civil.
Moradores dos bairros das Indústrias, Moinhos, Oriental e Imigrantes foram os mais afetados, mas os abrigos montados pelo governo receberam pessoas de quase todas as localidades. Enquanto a água descia em volumes recordes pela cidade, os estragos estavam apenas nas projeções, mas quando o nível do Taquari baixou, o cenário era de devastação.
As escadas escoradas nas residências retratam o desespero das famílias em subir os telhados para fugir do nível do rio. Muitas pessoas demonstravam nas expressões o desânimo após mais uma enchente, enquanto trabalhavam na limpeza das residências. No bairro das Indústrias, além do cenário devastador das residências destruídas, cerca de 100 carros que ficaram submersos estavam espalhadas pela avenida Augusto Frederico Markus.
Outros municípios afetados
Colinas passou por momentos de grande tensão para o salvamento de moradores ribeirinhos. Quando o rio chegou em um patamar que tornava impossível a presença das pessoas em casa e deixou vários ilhados, foi necessária uma força-tarefa para as buscas. Cerca de 500 pessoas precisaram sair de casa e quase todas ficaram em casas de parentes ou amigos. Apenas duas famílias foram abrigadas na Sociedade Comunitária da Linha Ano Bom Alto. No município, mais de 1 mil pessoas foram atingidas pela enchente.
A secretária de Saúde e Assistência Social, Angelita Herrmann, conta que o atendimento iniciou via WhatsApp na segunda-feira. “Nós e a Defesa Civil focamos na tentativa de resgate dessas pessoas. Em alguns casos o risco era de morte. Mas conseguimos resgatar todos, mesmo os que estavam em cima do telhado”, relata.
Natural de Colinas, Rosani Schwarz, de 55 anos, aponta que o cenário no centro era desesperador. Segundo ela, a rua General Osório ficou submersa até a altura da Praça dos Pássaros. “Fechou toda a rua, desde a ERS-129. Moro desde os 10 anos de idade aqui e não havia presenciado uma cheia que não desse pra enxergar os telhados das casas”, afirma.
A atuação de voluntários foi determinante para evitar uma tragédia maior. Os Bombeiros Voluntários de Imigrante e Colinas (Imicol) receberam o reforço da guarnição de Garibaldi e de vários populares que auxiliaram nos resgates. A comandante Caroline Hauschild destaca que o volume de água foi maior que a enchente de 2020 e pondera que o comparativo com as medições de Estrela são relativos. “Aqui passou dos 30 metros”, diz.
Já em Bom Retiro do Sul, a localidade mais afetada foi a Beira do Rio. Para o atendimento, foi solicitado o apoio do Comando Ambiental da Brigada Militar (Patram). Cerca de 40 famílias só conseguiram ser resgatadas na manhã da quarta-feira e foram levadas para as residências de familiares. O caso mais delicado foi o do morador Paulo Rocha, que ficou isolado dentro de casa e precisou de uma segunda incursão dos profissionais da Defesa Civil para ser salvo de um segundo forro improvisado.
Vizinhança solidária
Em Colinas, uma das áreas mais afetadas foi o entorno da Escola Estadual de Ensino Médio Colinas, na extensão da rua Parobé. Lá mora o aposentado Mário Knobloch. Às vésperas de completar 64 anos, ele conta que viveu sempre naquela região e que nunca viu nada parecido. “A água subiu uns três metros a mais do que a maior enchente que teve”, relata.
Knobloch teve prejuízos materiais, de móveis e eletrodomésticos, e uma parte da casa está condenada. As perdas fazem ele pensar em se mudar do local, a exemplo de outros vizinhos que tiveram as residências completamente destruídas. “Se tiver que investir muito dinheiro para recuperar a casa para morar nela, vou ficar provisoriamente, mas buscarei outro terreno”, afirma.
Junto dele, moram a esposa e a sogra, mas o desejo por maior segurança supera a necessidade de um maior espaço. “Temos que arrumar um lugar para três, nem que seja pequeno, para recomeçar e depois reconstruir. Longe deste valo”, acrescenta, ao se referir ao rio.
O aposentado lamenta as perdas das pessoas que vivem no entorno e calcula que pelo menos sete casas foram levadas pelas águas do Taquari, além de moradores do interior que perderam animais e a produção agrícola. Ainda assim, encontra espaço para uma ação solidária. Knobloch foi com a família para uma residência próxima e cedeu o local onde morava para o vizinho Edio Schuster.
Uma das tantas casas perdidas na cheia colidiu na residência de Schuster, que diz morar às margens do manancial há mais de 40 anos. Assim como grande parte da população, afirma que nunca presenciou situação parecida em Colinas. “Em 2020 não veio tanta água assim. Agora além da cheia, tem essa situação. É muito triste, vou ter que reformar”, desabafa.
O espírito colaborativo para a retomada é destacado por Knobloch. Uma equipe da Metalúrgica Hassmann, de Imigrante, esteve no local para auxiliar na limpeza, assim como pessoas de Teutônia. Ele se emociona ao falar sobre o apoio recebido. “Conseguimos sair dessa com muita ajuda. Temos que agradecer que ainda existem humanos nesse mundo”, conclui.
O drama de quem não quer voltar
Moradora do bairro das Indústrias há 12 anos, Maria Isabel Cesar aguardou o resgate de um bote ao lado de quase 60 pessoas. Com o rápido avanço do Rio Taquari às casas, ela e o esposo precisaram de uma “corrente humana” para sair da residência e se refugiar na laje da casa de uma vizinha. O mesmo foi feito com outros moradores.
“Conforme o rio subia, ficávamos com mais medo porque eram muitas pessoas em cima da casa. Estava chovendo e muito frio naquele momento. Ficamos sem comida, sem sinal de telefone, sem nada. Primeira vez que passo por isso e espero que seja a última”, relata Maria Isabel. Segundo ela, os resgates ocorreram de três em três pessoas.
Ela e o esposo retornaram na sexta-feira, 8, para avaliar os estragos deixados pela enchente. O cenário foi de uma casa completamente destruída, desde os móveis deixados até a estrutura da residência. “Não queremos voltar a morar aqui. Temos umas terras e iremos arrumar para morar lá. Vamos recomeçar”, afirma.
Voluntariado em meio às perdas
Na rua Palmeira das Missões, bairro Moinhos, Rosa Cruz auxiliou durante dias na preparação de alimentos de forma voluntária. Moradora da localidade há mais de 10 anos, relata que nesta cheia perdeu tudo, mas se dispôs a ajudar os vizinhos que precisam de amparo. Na barraca montada pelo irmão que veio de Triunfo, ela garantia café da manhã, almoço e jantar para quem estivesse na limpeza de casa.
Antes de constatar perda total nos móveis, Rosa enfrentou o drama de não ter sido resgatada em meio à enchente. “Foi terrível, fiquei no segundo piso da casa o tempo inteiro. Consegui tirar meus filhos antes. Mas o que vi depois foi cenário de guerra. Pensamos que tudo ia desabar, escutamos bichos gritando, pessoas clamando por socorro e um barco virar”, relata. Ela destaca nunca ter presenciado tragédia parecida com a registrada na semana anterior.
No entanto, a moradora do bairro Moinhos agradece por ter superado o episódio com vida. Por isso, decidiu se voluntariar. Enquanto ela fica na barraca, que também oferece roupas e itens de higiene aos residentes do bairro, o marido é responsável pela limpeza da residência. “As pessoas estão sem saber o que fazer. Aqui um abraça a dor do outro”, conclui.
“Sempre pareceu um local seguro”
Na rua Ernesto Alves, em Estrela, alguns moradores contavam com a segurança que o local apresentava até então. “Muita gente deixou os carros fora, achando que o rio não ia subir tanto”, recorda Gilmar Hoss. Por volta das 7h30min, o nível do rio subiu a ponto de assustar ele e os vizinhos. “Quando começou a descer (o rio) da região da Serra, aí tudo saiu do controle”, diz.
Hoss mora no centro da cidade há sete anos e quando ocorreu outra enchente de grandes proporções, em 2020, a água chegou a duas quadras da residência. “Nunca chegou aqui. Sempre pareceu um local seguro, mas agora estou vendo que não. Com essa enchente, provavelmente vai subir a cota.” Além de entrar nas casas, a água cobriu os veículos que ficaram na rua.
“Avisaram que era uma área alagável”
Morador da área central de Colinas desde 2001, Jair Altevogt foi um dos muitos surpreendidos pela alta repentina no nível do rio. Ele conta que passou por outros dois episódios de enchentes, nenhum tão grave. “Eu morava na Linha 31 de Outubro e quando me mudei, avisaram que era uma área alagável”, lembra. As residências nas ruas Parobé, Reinoldo Wilrich, Adolfo Gerhardt e Ramiro Bruxel foram as mais afetadas.
Se a proteção na cheia de 2020 foi mais simples, desta vez os prejuízos foram grandes para Altevogt. “Da outra vez, subi os móveis e eletrodomésticos só com tijolos. Agora só consegui tirar máquina de lavar, geladeira, e outras coisas menores. Um freezer ficou”, lamenta. Por outro lado, cinco casas nas imediações da escola de ensino médio não resistiram à força das águas e foram levadas pela correnteza.
Rastro de destruição pelo bairro
Perda total. É a avaliação feita por Adelmir do Nascimento, que mora com a família na rua Henrique Uebel, no bairro das Indústrias, em Estrela. Na manhã da quarta-feira ele retornou até a casa que ficou totalmente coberta pelas águas do Taquari. “Não consegui salvar nada”, diz. Situação semelhante era identificada em outros pontos do bairro.
A rua Frederico Alberto Sulzbach, que concentra boa parte do comércio do bairro, também apresentava um rastro devastador. As famílias retornaram e encontraram casas desmanchadas, comprometidas ou levadas pela força do rio. Somadas as vias do entorno, pelo menos dez imóveis foram totalmente destruídos, sem contar os ainda incalculáveis prejuízos, tanto para moradores, quanto para comerciantes.
“A água estava quase no pescoço”
“Não pensamos que poderia acontecer conosco”, afirma o proprietário de um mercado na entrada do centro de Colinas, Alex Lima. O ponto comercial funciona há cerca de 65 anos e, conforme o empresário, as cheias nunca avançaram para dentro do estabelecimento. Ele está no local há pouco mais de um ano e avalia se é viável seguir com o negócio. Lima relata que o nível da água no prédio passou dos 2 metros de altura. “Só em mercadorias tivemos cerca de R$ 120 mil. Não contabilizamos os móveis”, comenta.
Moradora da rua General Osório, ao lado da Praça dos Pássaros, Suzana Almeida também conta que não esperava que a enchente fosse atingir grandes proporções. “Eu segui as orientações e guardamos tudo. Vim do trabalho em Lajeado e quando terminamos de guardar tudo, a água estava quase no pescoço”, relata. Relatos também dão conta que o ginásio municipal, onde alguns móveis foram guardados nas arquibancadas, também foi atingido.