As duas grandes enchentes deste ano, em setembro e novembro, estão entre as cinco maiores desde que existem registros, a partir de meados do século XIX. Nos últimos três anos são 12 inundações do rio, e com o recorte do último um ano e meio, são dez eventos do tipo, o que evidencia uma mudança no comportamento do clima, a partir do chamado Super El Niño.
Registros dos níveis do Rio Taquari apontam, em média, 11 enchentes a cada 10 anos, entre as décadas de 1940 e 2010 – o ápice foi a década de 1980, com 19 inundações. No entanto, de 2020 para cá, são 12 registros. A engenheira ambiental Sofia Royer Moraes mantém estudos sobre o comportamento e o histórico das cheias e pontua que a região passa por “uma temporada atípica”. São seis inundações em 2023, condição sem precedentes, de acordo com a pesquisadora.
Ela inicia a análise pelo aquecimento do Oceano Pacífico, o que gera o fenômeno El Niño. Este fator, aliado a alta nas temperaturas do Oceano Atlântico, aumenta a evaporação e, por consequência, direciona mais chuva para a região Sul do Brasil. “Por isso falamos de um El Niño extraforte, dentro da classificação”, diz.
As observações relacionam o evento atual ao El Niño de 1941, que causou a maior inundação existente nos registros, de 29,92 metros no mês de maio daquele ano. “Lá nós não tínhamos observações tão ricas e assertivas como temos hoje, em termos de temperatura do oceano, por exemplo, para podermos comparar”, acrescenta Sofia.
A frequência entre as cheias é algo que surpreende os estudiosos. Em outubro deste ano, foram três inundações em dez dias. “Isso ocorre por causa das frentes frias, impulsionadas pela elevada massa de nuvens carregadas, que vêm com muita potência, em função dessa evaporação”, afirma Sofia. Ela ainda comenta que era esperado um semestre com maiores níveis de chuva, mas que os registrados são excepcionais.
Transição climática
As mudanças no clima sinalizam para uma rotina de eventos extremos. “Isso nos coloca em um estado de alerta máximo. Se olharmos para os últimos anos, vemos extremos de escassez e excesso de precipitação. As mudanças climáticas já eram previstas há anos, com uma tendência de aumento nos eventos mais intensos nos estados do Sul”, comenta Sofia.
A aceleração do processo também preocupa. Com a projeção do retorno do fenômeno La Niña, a especialista reforça a necessidade de uma melhor preparação para extremos cada vez mais intensos. “Se esperava que a transição fosse um pouco mais suave, mas percebemos que isso não ocorre”, conclui.
Auge do fenômeno
Os meses quando El Niño atinge o ápice são dezembro e janeiro, e as projeções da Organização Meteorológica Mundial indicam que o fenômeno segue até abril do ano que vem, pelo menos. A meteorologista Estael Sias reforça que a chuva mais volumosa no período não é uma regra. “Aqui no Rio Grande do Sul, a chuva de verão é mal distribuída, as frentes frias passam rápido em direção ao centro do país”, explica.
A meteorologista argumenta que uma soma de fatores acarreta nas condições extremas identificadas nos últimos meses. Ela cita um estudo de atribuição, que compara a situação do planeta com maior aquecimento, a um cenário com temperaturas normais. “Um planeta mais quente cria condições favoráveis a cheias extremas. Foi feita essa correlação em setembro, e existe sim um componente das mudanças climáticas”, explica.
O Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) faz recortes de três décadas para analisar aspectos pluviométricos. Estael usa os dados para demonstrar que os eventos extremos de chuva estão mais comuns. Um estudo feito pela MetSul Meteorologia, onde a profissional atua, verificou que a frequência das ocorrências de chuva forte, acima dos 50 milímetros, aumentou da década de 1990 para cá.
Chance de nova enchente
Para Estael, o histórico de três meses com níveis mais altos dos rios tornam o ambiente mais vulnerável, e o El Niño no verão pode favorecer eventos extremos mais localizados. “Agora, repetir o padrão extremo de setembro, outubro e novembro, quando tivemos cheias históricas em diversos rios ao mesmo tempo, é muito menos provável.”
Vale a atenção para o outono de 2024, para quando está previsto o término do fenômeno El Niño. “No começo da estação poderemos ter algum risco de enchente ou chuva excessiva, mas isso agora é apenas uma especulação”, finaliza.
ENTREVISTA
“É de extrema importância preservar as matas ciliares”
Mara Cíntia Winhelmann – engenheira agrônoma e doutora em fitotecnia
Jornal Nova Geração: Até que ponto as características de solo do Vale do Taquari propiciam a ocorrência de cheias de grande impacto?
Mara Cíntia Winhelmann: Não diria que somente as características do solo favoreçam a ocorrência de cheias de grande impacto, há uma série de fatores que podem contribuir para isso. A intensidade e a distribuição das chuvas, aliada às formas de relevo, por exemplo. Já que a nascente do Rio Taquari-Antas está situada nos Campos de Cima da Serra, no decorrer do seu fluxo a água ganha uma velocidade considerável, somando-se a isso a carga dos diversos afluentes contribuem para o represamento da água na região mais baixa. Outros fatores que contribuem para o grande impacto das cheias são a remoção das matas ciliares e práticas de manejo de solo inadequadas. A preparação da terra para o plantio convencional contribui para a compactação da camada subsuperficial (abaixo de 20 centímetros) do solo, enquanto a parte superficial fica solta e desprotegida, estando suscetível a erosão. Assim, a parte compactada não permite a infiltração de água e abastecimento do lençol freático, aliada a chuvas intensas acaba por transportar os sedimentos da parte superficial para o leito do rio, causando assoreamento e contribuindo para causar o transbordo da água. E as matas ciliares auxiliam na proteção servindo como barreira para esse fluxo de água, pois diminuem a velocidade da água, auxiliam na infiltração de água no solo e na conservação das margens dos rios, evitando o transporte de sedimentos.
Jornal NG: A sequência de dois eventos do porte como os de setembro e novembro podem afetar o relevo, até no sentido de uma mudança no curso do rio?
Mara Cíntia: Não somente estes dois eventos, mas ao longo do tempo o rio carrega sedimentos e materiais, os quais contribuem para mudar a paisagem aos poucos de forma lenta e gradual naturalmente. A velocidade da água pode fazer com que ocorra um aumento na extensão da largura do rio de forma mais intensa, principalmente em áreas onde não há mais a presença da mata ciliar. Assim como, a deposição de sedimentos que vão sendo levados de um lugar para outro contribuem para o assoreamento do rio, e fazem com que volumes maiores de água precisem de um espaço maior para serem escoados. Vale ressaltar que o fator humano também atua na mudança do curso do rio.
Jornal NG: Existem ações que minimizem os efeitos das chuvas em grande quantidade e do aumento no nível do rio?
Mara Cíntia: O Eventos de chuva intensa a princípio são eventos isolados, porém segundo os especialistas se tornarão cada vem mais frequentes, com a advento das mudanças climáticas. Assim, é de extrema importância preservar as matas ciliares, ou onde estas não existem mais, recuperá-las. Bem como, adotar medidas de manejo que evitem a compactação do solo, além de utilizar plantas de coberturas que auxiliam na manutenção das características do solo para que este consiga infiltrar o máximo de água. Assim, haverá menos escoamento superficial.