Exatos 75 dias separam 4 de setembro e 18 de novembro de 2023. Duas datas que ficam marcadas na história da região pelos desastres naturais que deixam cicatrizes físicas e emocionais na população. Em dois meses, o Vale do Taquari passa pela segunda e terceira maiores enchentes dos últimos 100 anos, sem que houvesse tempo para recuperação plena entre elas.
A preocupação com uma possível enchente começou na semana passada, com a previsão de um grande volume de chuvas, em especial nas cabeceiras da bacia Taquari-Antas. A chuva que iniciou na quinta-feira se tornou enxurrada na noite da sexta, o que sinalizou a grande possibilidade de transtornos. Rios e arroios ligados ao Taquari, como Forqueta, Fão, Saraquá e Boa Vista, tiveram elevação nos níveis e causaram os primeiros transtornos.
As precipitações na região da Serra e Norte Gaúcho contribuíram para a saturação do Taquari. Durante o sábado, o nível do rio aumentou de forma gradual. O volume mais alto apontado na régua do Porto de Estrela foi por volta das 7h do domingo, quando o manancial alcançou 28,94 metros. Foi a terceira maior enchente desde 1941 e a quinta vez que as marcas superam os 28 metros desde que existem registros de medição.
Maiores enchentes da história
- Maio de 1941 – 29,92 metros
- Setembro de 2023 – 29,62 metros
- Setembro de 1873 – 28,97 metros
- Novembro de 2023 – 28,94 metros
- Abril de 1956 – 28,86 metros
Cidade ilhada
Estrela enfrentou uma série de impactos devido à cheia. Desde a necessidade de reabrir o ginásio municipal Dr. Ito João Snel para receber desabrigados (leia mais na página 12) até a falta de comunicação quase generalizada em alguns momentos, o município se viu ilhado no fim de semana. Os bairros mais atingidos voltaram a ser Centro, Moinhos, Oriental e das Indústrias, mas localidades do interior também tiveram problemas.
A área central da cidade ficou isolada durante algumas horas, entre a noite do sábado e a tarde do domingo. As ruas Coronel Müssnich e Coronel Brito voltaram a registrar alagamentos, assim como o acesso pela ponte baixa, na rua Tiradentes, foi interditado – e permaneceu assim até o fechamento desta edição. O Moinhos foi outra localidade que ficou sem entrada e saída, com a fechamento das ruas Augusto Frederico Markus, São Roque e dos Marinheiros.
Em determinado momento, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) avaliou a possibilidade de interromper o tráfego na BR-386 na ponte sobre o Rio Taquari, no limite com Lajeado. O trecho da rodovia no quilômetro 355, nas proximidades da fábrica de rações da Languiru, ficou alagado e exigiu desvios por Teutônia ou Venâncio Aires.
Limpeza e críticas
Com a baixa no nível da água, na madrugada da segunda-feira, 20, o trabalho de limpeza pôde iniciar na parte da manhã. A rua José Leopoldo Keler, no bairro das Indústrias, foi uma dos mais afetadas. Irani Castro, 64, tentava tirar o lodo da residência que alugava até o início do mês. Hoje moradora do distrito de Glória, ela relata que o sentimento geral da comunidade é de resignação. “Ninguém mais quer ficar aqui”, diz.
Muitos moradores haviam mudado de bairro, após a enchente de setembro. Os que são proprietários dos imóveis demonstram preocupação sobre o que será feito. A família de Irani, por exemplo, é dona do terreno há cerca de 40 anos. Alguns tentaram alugar as casas, mas o contexto de duas cheias de grandes proporções dificulta a situação. Outra reclamação da comunidade era sobre a falta de suporte do poder público para a limpeza. “Estamos sem água e não trazem um caminhão-pipa para nos ajudar.”
No bairro Moinhos, o cenário era ainda mais complicado. Parte da rua São Roque, única ligação com o bairro Oriental, ainda estava submersa na manhã da segunda, enquanto os primeiros moradores voltavam para casa no trecho onde era possível a circulação. Morador da rua Soledade, outra bastante afetada, Oziel Rodrigues da Silva não conseguiu tirar nada da residência. “Nem um caminhão particular conseguimos, ficou tudo debaixo da enchente”, lamenta.
Entre os vizinhos, o sentimento é de impotência. As dificuldades passam desde a alegação de abandono por parte do município, até a limitação para alugar imóveis fora do localidade. Sem soluções imediatas, os moradores até cogitaram invadir alguma área para fugir das inundações. “Ninguém sabe mais o que fazer, assim fica complicada a coisa”, conclui Silva.
Permanecer ou não?
No fim da tarde do domingo, 19, o casal Jair do Anjos, 50, e Carla Elise dos Anjos, 42, tentava retornar para casa, na rua Henrique Uebel, no bairro das Indústrias, em Estrela. Para eles, a diferença entre as cheias está no tempo para preparação. No início de setembro, a família estava em Três Passos, e retornou para casa no meio da madrugada, após receber notícias da elevação do rio. Mesmo assim, conseguiram salvar poucas coisas de casa na oportunidade.
Além da residência, Carla mantinha um salão de beleza no local, ao lado do campo da Associação de Moradores do Bairro das Indústrias (Ambi). Com os prejuízos da enchente anterior, ela decidiu pela mudança de endereço – hoje, o estabelecimento funciona no centro da cidade. Para lá, o casal levou alguns dos móveis que conseguiram comprar em dois meses. “Agora vamos pensar se seguimos morando aqui”, comenta Anjos.
Dois dias fora de casa
Em Bom Retiro do Sul, um dos principais acessos à localidade da Beira do Rio ficou fechada por mais de 48 horas. Alguns moradores deixaram as residências no início da tarde do sábado, 18, e até o fim da segunda-feira, 20, não haviam conseguido retornar. O alagamento da ERS-129 já dificultava a passagem, mas um contêiner atravessado na rodovia inviabilizou qualquer tipo de trânsito.
Outro bloqueio ocorreu próximo dali, onde uma árvore de grande porte impediu o acesso à localidade de Faxinal. A maior preocupação era sobre a situação dos animais, uma vez que a região tem como principal fonte econômica a criação de gado leiteiro. Por outro lado, muitos dos moradores que precisaram ser salvos pelos Bombeiros e pela Defesa Civil em setembro, conseguiram deixar o local a tempo.
De barco
No sábado, dia 18 de novembro de 2023, por volta das 17h, o nível do Rio Taquari chegava aos 26 metros. Junto com dois funcionários da prefeitura de Estrela, utilizamos uma embarcação para passar por alguns pontos alagados no bairro Moinhos. As imagens são das ruas São Roque, Soledade e Santo Antônio.
O trajeto foi para verificar se ainda havia algum morador nas residências, diante da perspectiva de uma subida maior do rio. Uma moradora ainda relutava em sair de casa – acabou sendo retirada com apoio da Defesa Civil nas primeiras horas do domingo. Chamou a atenção a quantidade de entulho sobre as águas, ainda resquício da enchente de dois meses atrás.
Muitas das residências estão construídas em um nível mais alto, para evitar as cheias, mas com quase três metros a mais de elevação das águas, até a marca dos 28,94 metros na manhã seguinte, parte delas ficou submersa. A maioria dos moradores da localidade conseguiu deixar suas residências e foi acolhida no ginásio Doutor Ito João Snel, ou em casas de amigos e familiares.
Diferente do que ocorreu na enchente de setembro, a saída dos moradores foi mais tranquila, sem a necessidade de resgates dramáticos, com pessoas em cima dos telhados de casa. Por outro lado, os relatos são das dificuldades em conseguir caminhões e locais para retirada dos pertences. Tanto é que três abrigos foram abertos, somente em Estrela.
O processo de retomada promete ser desafiador, uma vez que muitas famílias e empresas sequer se recuperaram da cheia anterior. Muitos voltaram a perder os poucos bens materiais readquiridos desde então. A esperança e força da comunidade deve ser o impulso para o recomeço, enquanto o poder público tem a responsabilidade de buscar soluções para as próximas enchentes.